A aposentadoria da Ulyana e o fim de uma era

O posto mais alto de uma companhia pode receber vários nomes: primeira-bailarina, principal, étoile. Na Ópera de Paris, a hierarquia é rígida e subir de nível requer aprovação nos concursos internos. Porém, eles contemplam até o penúltimo nível, intitulado “première danseuse” (primeira-bailarina). O último degrau é conseguido apenas pela indicação do diretor ou da diretora de dança e recebe o nome de “étoile” (estrela). O motivo: para ser a bailarina-mor é necessário ter carisma, presença de palco, uma luz interior, algo diferente das outras, mas que não tem nome. Em outros termos, uma estrela. Sabemos quando estamos diante de uma étoile, ela consegue o que nenhuma outra consegue, não apenas pela sua técnica ou pelo seu talento. Ela simplesmente brilha, o palco é o seu lugar.

Ao longo dos trezentos anos de história do ballet clássico, quantas bailarinas conseguiram tal feito? Algumas dezenas. Das que conseguimos assistir graças ao material audiovisual existente, Anna Pavlova, Margot Fonteyn, Maya Plisetskaya, Galina Ulanova, Carla Fracci, Sylvie Guillem, Márcia Haydée, para citar algumas. Impossível não enxergar além da técnica e do talento. Elas são o ballet clássico.

Sob o meu ponto de vista, isso tem se perdido. O mundo mudou, as artes cênicas mudaram, a maneira como nos relacionamos com as artes e a cultura se transforma a cada dia. Dessa forma, o ballet clássico entrou nessa história. As bailarinas clássicas não são mais as artistas tocadas pela divindade, hoje acompanhamos o seu dia a dia no Instagram, as vemos reclamar no Twitter, comentamos em seus vídeos no YouTube, enchemos de coraçãozinho as postagens do Facebook. A Paloma Herrera criticou esse tipo de exposição nesta entrevista (leiam a resposta para a pergunta “What will you miss?”). “Você perde a magia”, ela disse, e eu concordo plenamente. Agora, as bailarinas são as nossas colegas de turma mais talentosas que tiveram a sorte de conseguir o que não conseguimos. Essa é a grande mudança? Não, apenas a consequência dessa nova relação entre público e artistas. Além disso, há outros aspectos a serem considerados, como disse a própria Paloma, como a relação entre as bailarinas e a arte da dança. Não é preciso ir muito longe, quem tiver contato com estudantes de ballet entende claramente o que isso significa.

Onde a Ulyana Lopaktina entra nisso tudo? O Mariinsky divulgou que ela irá se aposentar no fim da temporada, por causa de uma lesão, e não haverá espetáculo de despedida. A primeira vez em que assisti a um ballet de repertório do começo ao fim, quando sequer imaginava dançar, foi O lago dos cisnes dançado por ela. Para mim, Ulyana está no mesmo patamar de Pavlova, Fonteyn, Plisetskaya, Ulanova, Fracci, Guillem, Haydée. Ela é o ballet clássico. Ela figura entre as grandes divas da dança, as suas sapatilhas marcaram a história do ballet clássico.

Com a sua aposentadoria, uma era chegou ao fim. Ainda haverá bailarinas talentosas que continuarão com imensa dignidade essa bela história, mas algo se perdeu. A meu ver, bailarinas que são a própria essência do ballet clássico, nunca mais.

Ulyana Lopaktina, O lago dos cisnes. Foto: Anne Deniau.

 

Odette: frágil ou rainha?

Eu tenho o costume de ler os comentários dos vídeos no YouTube. Gosto de saber o que as pessoas acharam, mesmo que pareça um absurdo o que disseram. Em uma dessas vezes, assistindo pela vigésima vez à estreia da Evgenia Obraztsova em “O lago dos cisnes”, li o comentário de uma pessoa dizendo que a sua Odette era a moça frágil e amedrontada como deveria ser, ao contrário de várias outras bailarinas que davam ao cisne branco um ar de “diva”. E não é verdade?

Pensemos: você está caminhando no bosque feliz e contente, um feiticeiro medonho aparece do nada e te aprisiona no corpo de um cisne, sem mais nem menos. Desde então, você está fadada a ser cisne durante o dia e mulher durante à noite, além de estar longe de sua mãe que chorou tanto a ponto de formar um lago onde você é obrigada a ficar durante o dia. Não só, para se livrar disso, você precisa encontrar um rapaz que a ame verdadeiramente. E detalhe: encontrará esse rapaz, mas ele pedirá outra em casamento e você será prisioneira para sempre. Haja angústia!

Para mim, a melhor tradução desse aprisionamento pode ser vista nesta cena.

Primeira cena do filme Black Swan, de Darren Aronofsky.

Sim, eu acho que a Natalie Portman conseguiu entender claramente a personalidade da Odette (e também da Odile, mas isso fica para outro dia). A angústia está nos seus olhos, o tempo todo. E notem o momento em que ela toca o próprio rosto depois da transformação… Na segunda vez, parece que ela mostra as lágrimas escorrendo. Perfeito!

Mas ela é atriz, existe uma facilidade maior pela própria característica da profissão (e falei sobre essas diferenças aqui). E entre as bailarinas? A meu ver, duas conseguiram encontrar esse tom de fragilidade: a Evgenia Obraztsova e a Gillian Murphy. Sendo que a Gillian consegue manter isso o tempo todo ao longo do ballet, eu fico impressionada.

Por outro lado, o perfil “rainha dos cisnes” impera. Acho que duas bailarinas atingem o grau máximo nesse quesito: Ulyana Lopatkina e Svetlana Zakharova. Divas do começo ao fim.

Dentre essas duas possibilidades, eu prefiro a Odette frágil, amedrontada e angustiada para fazer o contraponto com a Odile vil, sedutora e dona da situação. Mas essa é uma visão absolutamente pessoal.

E vocês, preferem a frágil ou a rainha?

Aniversário do blog: dois anos

Quando comecei no ballet clássico, em junho de 2007, eu não pensei em momento algum que estava prestes a me tornar uma “bailarina adulta”. Pode parecer demagogia, mas não é. Simplesmente fui atrás daquilo que queria, não questionei sobre a minha idade. As coisas só mudaram quando comecei a conhecer o mundo da dança clássica.

De mil maneiras, de companheiras de turma a professoras, parecia que eu não podia estar ali. Tudo muito sutil, mas eu percebia. Foi nesse momento que o blog surgiu, para eu não me sentir tão sozinha.

O tempo passou, o ballet clássico para adultas virou moda, encontrar um estúdio é bem mais tranquilo. Há profissionais que realmente acreditam no ensino para esse público. Mas ainda paira no ar, de leve, a ideia de que estamos no lugar errado. É o que leio nas entrelinhas, há tempos. O grande problema é acreditarmos nisso.

Com o aniversário do blog se aproximando, comecei a questionar se sou apenas uma pesquisadora do assunto. Talvez o ballet estivesse em mim nas palavras, não no corpo. E por uma daquelas iluminações divinas, resolvi vasculhar no meu armário a área reservada aos meus figurinos. Desdobrei um por um. São seis, ao todo, de ballet clássico, jazz e dança do ventre. E quando abri a caixa com os adornos de cabeça? Coroas, guirlanda, aplique de trança, arranjo do coque do curso regular… Eu já tenho uma história com a dança. Naquele momento, a minha dúvida estava respondida. O Dos passos da bailarina é um reflexo da bailarina que eu sou e não o contrário.

Eu no palco. Le Papillon, 2008, e La Bayadère, 2009.

Em dois anos, o blog deu origem a:
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306.239 visitas

Ao contrário do ano passado, não fiz nada especial para comemorar. Mesmo assim, acabei encontrando um presente. Um documentário curto, de meia hora, sobre a Ulyana Lopatkina, primeira-bailarina do Mariinsky Ballet. O idioma original é russo, não há legendas, mas é basicamente feito de imagens sem falas. Não há nada “demais”, são seus ensaios, estudos solitários, apresentações e coxia. Isto é o dia a dia de uma bailarina. É de uma beleza ímpar. Para assistir, partes [1] [2] [3] [4]

Obrigada pela companhia, visitas, histórias compartilhadas, informações, comentários, retornos. São vocês que me mostram, todo dia, que estamos juntos no mundo do ballet clássico.

Dois anos é apenas o começo.