Dez anos

Dia desses, estava dobrando minhas roupas recém-recolhidas do varal e minha mãe entrou no meu quarto. “O que são essas coisas cor-de-rosa?” “São as minhas meias-calças do ballet, encontrei guardadas no armário e resolvi lavar”.

Olhei para aqueles montinhos bem dobrados, um ao lado do outro, e eu me senti olhando para um passado distante. Não faço aulas regulares de ballet há sete anos. Não piso em um palco há nove anos. Há meses e meses não faço uma sequência de barra sequer. Em uma prateleira da minha estante, as minhas sapatilhas de ponta e meia-ponta estão devidamente organizadas com meus sapatos de flamenco. Ou seja, de qualquer forma, a minha barra fixa e meus calçados de dança dizem para quem quiser saber: neste quarto, existe alguém que dançou.

Dançou, pretérito perfeito. A dança infinitamente distante da minha vida.

Nós nos encontramos nos últimos tempos? Sim. Quando eu chorei ao ver a foto dos agradecimentos de uma apresentação pelos 50 anos de Jewels, de George Balanchine; Ópera de Paris, New York City Ballet e Bolshoi juntos foi demais para o meu coração. Quando assisti à nova montagem de O lago dos cisnes, do Royal Ballet, e percebi que Marianela Nuñez é a melhor bailarina da atualidade; que Liam Scarlett compreendeu a grandeza desse repertório e reverenciou o ballet clássico como poucos conseguiram. Quando assisti ao vídeo que a Myrna Jamus me deu de aniversário e senti a bailarina acordar em mim novamente. Quando encontrei este vídeo para acompanhar o post e chorei ao assisti-lo.

Paloma Herrera como diretora de ballet do Teatro Colón e Marianela Nuñez como convidada para dançar Aurora, de A Bela Adormecida, ambas falando a respeito da montagem. Não há nada demais aí. Sempre admirei as duas como grandes artistas, mas vê-las falando em espanhol, em um teatro da Argentina, terra natal delas, praticamente aqui ao lado foi um despertar para mim. O ballet clássico continua aqui ao lado. Ele não está apartado da minha vida.

O blog sempre foi uma extensão do meu amor, do meu apreço e da minha dedicação à dança. Nos momentos mais presentes, havia mais posts, mais vídeos, mais links, mais informação. Nos momentos mais distantes, apenas uma coisa ou outra. Três meses sem postagens quer dizer apenas isso, eu nem lembrei que o ballet clássico existia.

Aí, veio o aniversário. Hoje o Dos passos da bailarina está fazendo dez anos. Aquele peixinho fora d’água, que não queria mais ser solitário, resolveu criar um blog. Lembro da lista de nomes. O primeiro post. Os textos de uma novata, depois de uma estudiosa, depois de alguém que apenas gostava de dançar. O livro. As tantas histórias de vocês. Quem começou e parou, quem começou e se tornou profissional, quem voltou e continuou. Há quem não tinha nascido e hoje está no baby class ou nos primeiros anos. Quem era criança e hoje é adolescente, quem estava saindo da infância e hoje é jovem, quem era jovem e hoje é adulta. Eu pisquei, o tempo passou e chegamos a uma década neste caminho.

Foi como eu queria? Um pouco sim, um tanto não. Foi o suficiente? Não sei. Só uma coisa é certa: foi como deveria ser.

Obrigada por todos esses anos, de coração. O blog não terminou, eu quero continuar, talvez em outros termos. Textos mais longos de vez em quando, um podcast curtinho, quem sabe? Mas este lugar está longe de acabar, porque é ele quem sempre me lembra: “Bailarina, você não vai voltar a dançar?”.

Vou sim. Não sei quando, mas eu vou.

Uma aula de ballet em “O corsário”

Agora sim, posso dizer que o ballet clássico voltou aos meus dias. Preciso escrever textos, eu sei, mas tudo bem se hoje eu compartilhar dois vídeos?

As duas coreografias já apareceram no blog, a primeira dançada pela Jurgita Dronina, na época no Het Nationale Ballet/Dutch National Ballet (hoje ela está no The National Ballet of Canada e também dança no English National Ballet) e a outra pela Nina Kaptsova, no Bolshoi Ballet. Hoje, as variações são dançadas em uma montagem do American Ballet Theatre, por duas de suas maiores bailarinas, hoje aposentadas da companhia: Julie Kent (diretora artística do The Washington Ballet) e Paloma Herrera (diretora artística do Balé Estável do Teatro Colón).

Não gosto de dois vídeos na sequência para não deixar a página “pesada”, mas compreendam, é um deleite assisti-los na sequência. Talento, domínio técnico, pernas mais baixas, presença de palco… Dá até um afago no peito, o ballet persiste.

Julie Kent, “Variação de Medora”, O corsário, American Ballet Theatre.
Para assistir com a Jurgita Dronina, aqui.

Paloma Herrera, “Variação de Gulnara”, O corsário, American Ballet Theatre.
Para assistir com a Nina Kaptsova, aqui.

A aposentadoria da Ulyana e o fim de uma era

O posto mais alto de uma companhia pode receber vários nomes: primeira-bailarina, principal, étoile. Na Ópera de Paris, a hierarquia é rígida e subir de nível requer aprovação nos concursos internos. Porém, eles contemplam até o penúltimo nível, intitulado “première danseuse” (primeira-bailarina). O último degrau é conseguido apenas pela indicação do diretor ou da diretora de dança e recebe o nome de “étoile” (estrela). O motivo: para ser a bailarina-mor é necessário ter carisma, presença de palco, uma luz interior, algo diferente das outras, mas que não tem nome. Em outros termos, uma estrela. Sabemos quando estamos diante de uma étoile, ela consegue o que nenhuma outra consegue, não apenas pela sua técnica ou pelo seu talento. Ela simplesmente brilha, o palco é o seu lugar.

Ao longo dos trezentos anos de história do ballet clássico, quantas bailarinas conseguiram tal feito? Algumas dezenas. Das que conseguimos assistir graças ao material audiovisual existente, Anna Pavlova, Margot Fonteyn, Maya Plisetskaya, Galina Ulanova, Carla Fracci, Sylvie Guillem, Márcia Haydée, para citar algumas. Impossível não enxergar além da técnica e do talento. Elas são o ballet clássico.

Sob o meu ponto de vista, isso tem se perdido. O mundo mudou, as artes cênicas mudaram, a maneira como nos relacionamos com as artes e a cultura se transforma a cada dia. Dessa forma, o ballet clássico entrou nessa história. As bailarinas clássicas não são mais as artistas tocadas pela divindade, hoje acompanhamos o seu dia a dia no Instagram, as vemos reclamar no Twitter, comentamos em seus vídeos no YouTube, enchemos de coraçãozinho as postagens do Facebook. A Paloma Herrera criticou esse tipo de exposição nesta entrevista (leiam a resposta para a pergunta “What will you miss?”). “Você perde a magia”, ela disse, e eu concordo plenamente. Agora, as bailarinas são as nossas colegas de turma mais talentosas que tiveram a sorte de conseguir o que não conseguimos. Essa é a grande mudança? Não, apenas a consequência dessa nova relação entre público e artistas. Além disso, há outros aspectos a serem considerados, como disse a própria Paloma, como a relação entre as bailarinas e a arte da dança. Não é preciso ir muito longe, quem tiver contato com estudantes de ballet entende claramente o que isso significa.

Onde a Ulyana Lopaktina entra nisso tudo? O Mariinsky divulgou que ela irá se aposentar no fim da temporada, por causa de uma lesão, e não haverá espetáculo de despedida. A primeira vez em que assisti a um ballet de repertório do começo ao fim, quando sequer imaginava dançar, foi O lago dos cisnes dançado por ela. Para mim, Ulyana está no mesmo patamar de Pavlova, Fonteyn, Plisetskaya, Ulanova, Fracci, Guillem, Haydée. Ela é o ballet clássico. Ela figura entre as grandes divas da dança, as suas sapatilhas marcaram a história do ballet clássico.

Com a sua aposentadoria, uma era chegou ao fim. Ainda haverá bailarinas talentosas que continuarão com imensa dignidade essa bela história, mas algo se perdeu. A meu ver, bailarinas que são a própria essência do ballet clássico, nunca mais.

Ulyana Lopaktina, O lago dos cisnes. Foto: Anne Deniau.