Quais são as memórias mais presentes da arte na minha vida?
Eu menininha assistindo ao filme “O mágico de Oz” na televisão. Recém-alfabetizada lendo “O menino maluquinho” na casa da minha avó materna. Eu trancada no quarto ouvindo mil vezes um disquinho de ensino de música clássica em que os instrumentos da orquestra eram apresentados um por vez e depois todos juntos tocavam “Farandole“, de Bizet. Na escola, assistindo ao filme “Sociedade dos poetas mortos” e chorando de soluçar. Descobrir “Romeu e Julieta“, ler uma vez e reler mais de quinze vezes. Da faculdade em diante, visitar as exposições de Monet, Degas e Dalí no Masp, e a Bienal de São Paulo. Adulta, assistir à peça “Hysteria“, do Grupo XIX de Teatro, uma divisora de águas na minha vida. Música clássica na Sala São Paulo e no Theatro Municipal. Assistir ao meu repertório preferido, “Giselle“, dançado pelo Bolshoi.
Entre esses vários momentos, eu também passei para o outro lado. Fiz três peças de teatro e quase me tornei atriz profissional. Dancei em três espetáculos como aluna apaixonada. Escrevi três livros e tenho outros em andamento. Na última peça, a minha personagem (a menina Ofélia do conto “A legião estrangeira“, de Clarice Lispector) contava que matou um pintinho. Em uma das apresentações, lembro de uma moça na minha frente com os olhos marejados e uma expressão de angústia. Enquanto eu contava sobre o pintinho, eu pensei: “Ela matou um na infância”. Possivelmente, ela voltou mais tranquila para casa naquele dia. Ela não era a única no mundo que acabou com um pintinho sem querer.
Todos nós tivemos pelo menos um encontro transformador com a arte. Uma música, um filme, uma peça, um livro, um quadro. Alguma obra, em algum momento, mudou a nossa visão de mundo.
Aí vem a pergunta: como essa obra surgiu? Músicas caíram do céu em um dia de chuva? Livros nasceram em árvores? Atores e atrizes apareceram no seu quintal? Quadros coloridos começaram a surgir nas paredes da sua casa como num passe de mágica? Filmes brotaram quando uma televisão foi ligada?
A resposta é óbvia, mas vamos a ela: não, essas obras foram criadas. Há muitas pessoas envolvidas nesse processo. A ideia surge com os artistas. A produção vem depois, de artistas e outros profissionais. Ou seja, muitas pessoas trabalham bastante para a gente enxergar a vida e o mundo de outra maneira.
Quem duvida, por favor, crie alguma coisa. Tente. Junte a turma do seu bairro e produza “Dom Quixote”. Reúna um dos seus grupos de whatsapp, especialmente um bem raivoso que chama artistas de vagabundos, e façam um filme. Componha uma canção e grave. Escreva uma história e depois a transforme em livro. Vamos lá, mãos à obra! Depois volte aqui e venha me dizer que artistas levam uma vida tranquila. Tente trabalhar sem ser um alvo constante. Tente produzir sem dinheiro para a obra e tampouco para se sustentar dignamente. Afinal, artistas vivem de inspiração e vento, quem precisa de dinheiro e isenção fiscal são os fabricantes de geladeira e refrigerante.
“Cássia, não venha com mimimi! Há coisas mais importantes no país, como saúde e educação.”
Tiraram educação artística do currículo escolar e eu não estou sabendo? A psiquiatra brasileira Nise da Silveira não revolucionou o tratamento de saúde mental por meio da arte? Eu poderia usar índices, pesquisas e informações para mostrar que arte tem relação direta com saúde e educação, mas eu não vou. Hoje, não.
Eu queria terminar 2019 sendo delicada e afetuosa, mas eu não sou “good vibes”. Aliás, se alguém consegue ser na situação em que nos encontramos, boa sorte, porque você vai precisar.
Dei mil voltas para não falar claramente sobre a demonização da cultura, o ataque às artes e a perseguição aos artistas. Será que ainda existe democracia? Se temos de pensar mil vezes antes de falar, talvez ela seja apenas uma abstração.
As informações necessárias sobre a importância da arte e a economia da cultura virão em 2020. Vamos dialogar bastante por aqui. Hoje o texto foi pessoal e desconexo porque o que existe em mim nesse fim de ano não é mel, é bile. Mas em poucas horas um novo ano vai surgir e continuaremos. Porque é isso o que fazemos, continuamos.
De uma maneira ou de outra, a arte sempre resiste, porque sem ela não existimos.
Feliz Ano-Novo!
E taca-lhe pau!!!
Esse ano, reencontrei uma professora querida do primeiro semestre da faculdade. Ela me disse o seguinte: “a arte alimenta a nossa alma”. Durante o programa “Cultura, o Musical”, Cláudia Raia, que foi uma das juradas durante a competição, declarou: “um povo sem cultura é um povo sem identidade”. A canção “Comida”, interpretada pelo Titãs, diz: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.
A arte é tão essencial quanto o ar… sem ela, o que seria de nós?