As sapatilhas de ponta no meio do caminho

A última vez em que dancei no palco foi em dezembro de 2009. Eu estava com 30 anos de idade, fazia aulas na minha terceira escola e já havia iniciado o trabalho de pontas.

Começamos os ensaios na meia-ponta, até que a professora decidiu: dançaríamos nas pontas. Um passo ou outro apenas, coisa simples, nada muito difícil. Ali, a coreografia acabou para mim. Eu não me achava, sentia medo, a sapatilha não era adequada, muito dura e larga para o meu pé… Enfim, em vez de dançar, eu só me preocupava em não cair. Próximo ao dia da apresentação, a professora mudou de ideia, cada aluna poderia escolher se dançaria nas pontas ou na meia-ponta. Preciso dizer qual foi a minha escolha?

Foi libertador! Voltei a dançar a coreografia, mas não como gostaria, pois perdi muito tempo em ensaios inúteis. Se o tempo todo eu só tivesse usado a meia-ponta, o resultado seria outro, não tenho dúvidas.

Passaram-se quantos anos? Quase nove. Durante esse tempo, sempre questionei o assunto, mas hoje ele está bem mais claro para mim. É apenas um questionamento, tudo bem? O ballet clássico continuará como sempre foi, ninguém precisa ficar brava comigo. Mas, a meu ver, as sapatilhas de ponta são um entrave para as bailarinas. Todas.

Quem acompanha ballet clássico para além da técnica e dos repertórios, sabe que não é incomum encontrar bailarinos profissionais que começaram a dançar mais velhos. Não falo da carreira, falo de aulas mesmo: 16, 18, 20, 22 anos. Bailarinas? Daquelas que conheço, a mais velha é a Misty Copeland, ela começou a fazer aulas aos 13 anos. A Sylvie Guillem começou aos 11 anos e não duvido que disseram: “Começou velha!”. Uma criança estar velha para qualquer coisa é algo tão absurdo, mas no ballet clássico é visto como normal.

Por que existe essa diferença? A meu ver, por uma única razão: as sapatilhas de ponta.

Quem já usou pontas entenderá bem isso: as meninas têm dois começos no ballet clássico. O primeiro, quando começa a fazer aulas. O segundo, quando inicia o trabalho de pontas. Parece que nunca dançamos na vida. Tudo muda: o eixo, a intensidade de alguns movimentos, o atrito, a força. A técnica clássica está ali, mas apenas as meninas têm de dançá-la de duas maneiras, na ponta e na meia-ponta, e dominá-las igualmente. Isso demanda bastante tempo, muito treino, um pouco de choro e paciência.

Quanto tempo até encontrar a sapatilha ideal? Quanto tempo até ter estrutura física para suportar as pontas sem prejudicar o corpo? Como deixar a sapatilha bonita no pé? Há quem nunca encontre uma sapatilha para chamar de sua, há quem jamais consiga ter força suficiente do abdome até os pés, e poucas pessoas sabem que bailarinas profissionais quebram suas palmilhas na mão e se mantêm na ponta muito mais pela própria força do que pela dureza da sua sapatilha.

Agora, subtraiam esse tempo despedido com as pontas e somem a isso o treinamento sem elas. Onde estaria a sua técnica clássica?

“Cássia, mas é absolutamente possível treinar técnica clássica na meia-ponta e ter aulas de ponta, sempre foi assim.” Para quem estuda para ser profissional, sem dúvida. Para as amadoras, como eu, não é tão simples. No último ano em que tive aulas regulares de ballet, eu só fiz aulas na meia-ponta e era uma maravilha. Mas se eu quisesse aulas de ponta, azar o meu, porque eu não conseguiria fazer mais aulas do que as minhas duas por semana.

Sim, existe o encantamento das pontas, a beleza ao vê-las em ação, a história do ballet clássico não existe sem elas. Sei disso tudo. Mas a técnica clássica independe delas, a dança clássica também existiria sem elas. Os bailarinos não são incríveis sem sapatilhas de ponta? Por que as bailarinas também não poderiam ser?

Não, isso não é um manifesto para banir as pontas. Que elas continuem! Mas, confesso, amaria ver bailarinas clássicas dançando repertórios sem elas. Quem sabe um dia.

2 comentários sobre “As sapatilhas de ponta no meio do caminho

  1. AI ME ABRAÇAAAA
    Esse texto veio quando desisti das pontas. Desisti! Não é pra mim e não vai me fazer falta.

    Eu tive quase a mesma experiência, ensaiei na meia ponta e tava tudo ótimo! coloquei ponta e deu vontade de chorar, nasceu um pé esquerdo no lugar do direito e eu não sabia.

    Sempre senti as pontas como uma trava, mas não mais! E a decisão ficou mais forte ainda agora que torci de leve o tornozelo esquerdo, e com seu texto lindo! ❤

    MUITO OBRIGADA! ❤ ❤ ❤

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