Há alguns dias, eu disse que faria apenas mais um post importante antes do ano terminar. É mais um questionamento acerca da minha própria postura, mas servirá para outras pessoas também.
Por uma ironia do destino, depois de passar a vida inteira com os livros, sendo leitora e profissional da área, eu desenvolvi alergia a um componente presente na tinta de impressão. Não posso mais sequer abrir um livro de papel sem ter uma reação alérgica.
Graças a isso, me voltei aos livros digitais e, vejam só!, nunca li tanto na vida. O Kindle é meu fiel companheiro. Lancei dois livros apenas em versão digital. Para mim, literatura e ebooks caminham de mãos dadas. Mas isso também trouxe uma outra coisa: ver dia sim outro também, alguém reclamar que “a literatura vai morrer” e que “livros de verdade” são livros de papel, como se essas pessoas ainda utilizassem o papiro. Sempre há um saudosista rechaçando a tecnologia.
Até o dia em que me deu um estalo: se na literatura eu olho para frente, na dança, eu olho para trás.
Quantas vezes, nesses quase seis anos, eu critiquei os rumos da dança ou mostrei bailarinas do passado como exemplos do “ballet de verdade”?
Antes de prosseguir, assistam a este vídeo do Het Nationale Ballet/Dutch National Ballet com os primeiros-bailarinos da companhia.
Vídeo com os primeiros-bailarinos do Het Nationale Ballet/Dutch National Ballet. Fonte: Pinterest.
Essa é a síntese do ballet clássico nos dias de hoje. Não há mais bailarinas fofas. Não há mais bailarinos coadjuvantes. São mulheres e homens com corpos de aço, capazes de fazer o que os pobres mortais jamais conseguirão.
Continuo uma crítica voraz da perna alta, mas só me dei conta do motivo depois de conversar com a Melissa sobre um outro ponto do ballet. Da minha parte, não é uma questão ideológica, mas estética: eu acho feio demais, sem qualquer propósito. Mas as mudanças do ballet nas últimas décadas não se resumem a isso, há muito mais envolvido e até agora eu me neguei a enxergar.
Eu não sou saudosista, sempre olhei para frente. Não acho que “antes era melhor”, porque tenho consciência que há coisas ruins em qualquer época. Muitas pessoas acham que o melhor já passou. Eu sempre acho que o melhor está por vir.
Nesses anos de blog, sempre defendi que a dança é para todos e que, em algum momento, o ballet iria por um outro caminho. Se olharmos com atenção, a diversidade está chegando aos poucos. Parece um contrassenso − se é para todos, por que nem todo mundo consegue fazer o que eles fazem? −, mas não é. Os corpos continuam de aço, mas as bailarinas e os bailarinos não são mais todos iguais. Aí está a diferença.
Podem anotar: não demorará muito para olharmos para o palco e conseguirmos nos enxergar. Quando esse dia chegar, quero ser testemunha de algo que sonhei e esperei para ver. Para isso, não vou mais olhar para trás. O passado do ballet continua sendo nosso pilar, mas existe um longo caminho a nossa espera. Não, jamais defenderei a dança que não nos diz nada, mas é preciso olhar para frente e é isso o que farei daqui em diante.
Obrigada pela companhia em 2014, queridas e queridos. Ano que vem está logo aí, cheio de dança.
Cássia, fico feliz que meu e-mail tenha provocado uma reflexão interessante. 🙂
O que eu valorizo no ballet do passado é a expressão artista. É a ideia de que um bailarino ou bailarina não é apenas um corpo, mas sim uma alma que transmite arte. Infelizmente eu acho que essa visão se perdeu um pouco na obsessão pelo corpo e movimento perfeitos do ballet hoje. Tenho pavor da ideia de que somente alguns corpos podem dançar (eu acredito, de verdade, que qualquer tipo de corpo, com o devido treinamento, pode dançar ballet). No entanto, o ballet tem que ir pra frente e é natural que a técnica se refine, que os movimentos fiquem mais difíceis, que os bailarinos tenham esses “corpos de aço”.
Mas vejo muita coisa boa acontecendo. Vejo Misty Copeland, Michaela DePrince, Precious… Vejo também a abordagem de Sara Mearns para O Lago dos Cines, vejo Natalia Osipova fazendo uma Giselle que nunca imaginamos. Dança é arte. E toda arte se recicla de algum modo. Se torna outra em si mesma.
Melissa, na verdade, este post foi pensado no começo de dezembro, mas ficou reservado para ser escrito como o último do ano. A coincidência foi que, ao assistir à Alina antes de escrever para você, tive esse estalo de que não gosto da perna alta porque acho bem feio. Sobre essa dicotomia entre a questão estética (o bailarino ser um corpo) versus a artística (o bailarino é uma alma que transmite alguma coisa), ela não é de hoje, no passado o ballet sofreu com o mesmo problema, quando a técnica se sobrepôs à arte e os rumos da dança mudaram (e estou para escrever sobre isso faz tempo). Talvez a situação atual nos incomode porque estamos vivendo, justamente, o período da técnica. Sinceramente, isso por si só não me incomoda. O que mais me incomoda é o exagero e tenho cá para mim que isso tem diminuído de uns tempos para cá, até porque os bailarinos têm sofrido fisicamente e se aposentado mais cedo por causa disso. Acredito que o futuro trará uma preocupação maior com a saúde dos bailarinos, uma grande diversidade de tipos de bailarinos e o fim das hierarquias nas companhias. Se assim será, só o tempo dirá. Beijo gigante.
Interessante você abordar este tema, eu estava refletindo e lendo algumas coisas sobre conservadorismo nestes últimos dias e a conclusão para mim foi que há coisas que precisam ser conservadas sim, por serem boas, mas mesmo conservando as coisas boas e belas, coisas maravilhosas podem vir também, no nosso caso a “democracia” maior do corpo das bailarinas no ballet acho um ponto muito positivo!
Paula, você tem toda razão, é bem por aí mesmo, manter o que precisa ser conservado e se abrir para as coisas boas que estão surgindo. É possível ter os dois. Difícil é reconhecermos isso, como foi no meu caso, mas pensar a respeito é o primeiro passo. =] Imenso beijo!