Provavelmente, a maioria de vocês conhece o maestro João Carlos Martins. Falei sobre ele em um post, aqui. Engraçado que eu divaguei sobre o fato dele ter escolhido outro caminho na música, porque aceitou que não poderia mais tocar.
Há poucos dias, ele passou por uma cirurgia para voltar a movimentar os braços. Não conseguiu “apenas” isso, ele voltou a abrir as mãos depois de dez anos. Ele é um pianista.
“[…] Mas, no momento em que minha mão abriu na operação, já comecei a sonhar: ‘Vou continuar a reger. E quem sabe volto a tocar piano também’. Porque, no fundo, eu não me conformo de não poder tocar. É uma dor. É como um cadáver enterrado lá dentro.”
Para ler a entrevista completa, concedida à jornalista Mônica Bergamo, aqui.
E no Dia Internacional da Dança, por que eu falo de um músico? Porque João Carlos Martins não é apenas um músico. Aos 71 anos, ele passou por cima do próprio medo para que a música não saísse de sua vida. Aliás, é o que ele tem feito: ir contra a maré para a música continuar.
E na dança? Há um excesso de lágrimas, paixão e reclamação. Em contrapartida, pouco estudo e dedicação. Afinal, o que é mais importante, ser vista como bailarina ou dançar?
Sim, há uma diferença. Falarei especificamente do ballet clássico: é algo que dá status. Você vira a bailarina da turma, da família, do bairro. As pessoas a reconhecem na rua por conta do porte e do coque. Você coloca fotos de si mesma no Facebook e as pessoas curtem. Você conta no Twitter que está indo para a aula de ballet. Você se comporta como a namorada apaixonada e diz que a dança é a sua vida. Além disso, se acha mais especial que os demais mortais, afinal, você é bailarina!
Agora, digamos que a vida lhe imponha uma condição: para continuar no ballet clássico, ninguém poderia saber disso. As pessoas só descobririam sentadas na plateia, no momento em que as cortinas se abrissem e você começasse a dançar. Terminado o espetáculo, elas não te reconheceriam lá fora. Você voltaria a ser como todas as outras pessoas que não dançam.
O que você faria?
Ficou em dúvida? Então talvez você precise repensar a dança na sua vida.
Voltando ao João Carlos Martins, hoje ele quer uma coisa: sentar novamente diante de um piano e voltar a tocar. Porque essa é a sua pulsão de vida. Ele é pianista na sua essência. Ele é famoso, criou uma orquestra, é reconhecido no mundo por toda a sua história. E qual é o seu sonho? Tocar novamente um piano.
Qual é o papel da dança na sua vida? Essa resposta é pessoal, íntima e reservada. Não importa qual seja. Só não vale ser incoerente. Porque o que define uma bailarina em qualquer lugar do mundo é uma única coisa: ela realmente se dedica a dançar. O resto é firula e divagação.
A BAILARINA
Um, dois, três e quatro,
Dobro a perna e dou um salto,
Viro e me viro ao revés
e se eu caio conto até dez.
Depois, essa lenga-lenga
Toda recomeça.
Puxa vida, ora essa!
Vivo na ponta dos pés.
Quando sou criança
Viro orgulho da família:
Giro em meia ponta
Sobre minha sapatilha.
Quando sou brinquedo
Me dão corda sem parar.
Se a corda não acaba
Eu não paro de dançar.
Sem querer esnobar
Sei bem fazer um grand écart.
E pra um bom salto acontecer
Me abaixo num demi plié.
Sinto de repente
Uma sensação de orgulho
Se ao contrário de um mergulho
Pulo no ar num gran jeté.
Quando estou num palco
Entre luzes a brilhar,
Eu me sinto um pássaro
A voar, voar, voar.
Toda bailarina pela vida vai levar
Sua doce sina de dançar, dançar, dançar…
BAILARINA QUE PISA NO CÉU
Bailarina que pisa no céu
Mais leve que um papel
Leva os sonhos do mundo
Ao mundo belo da arte de bailar.
Deixa o palco e corre nas ruas,
Acentua o passo firme
Em cima da sociedade
E gira em sentido da verdade.
A BAILARINA
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé
Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá
Não conhece nem lá nem si
mas fecha os olhos e sorri
Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta nem sai do lugar.
Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina
Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
CIRANDA DA BAILARINA
Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Berruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem
Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem
um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida
Ela não tem
Não livra ninguém
Todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina
Ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem
Medo de subir, gente
Medo de cair, gente
Medo de vertigem
Quem não tem
Confessando bem
Todo mundo faz pecado
Logo assim que a missa termina
Todo mundo tem um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem
Sujo atrás da orelha
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha
Ela não tem
O padre também
Pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina
Reparando bem, todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília
Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem
Procurando bem
Todo mundo tem…
Só a bailarina que não tem…
Me identifiquei muito com o comentário da Tina e com a frase “A dança é primeiro da gente”, hoje também só danço porque me encanta, pois não tenho mais chances de dançar profissionalmente (tenho 33 anos) e porque hoje trabalho muito e ás vezes até me indisponho no trabalho por conta dos ensaios e algumas aulas extras, mas na verdade pouca gente sabe que danço, só os mais próximos, em muitas apresentações minhas não foi ninguém, nem namorado, nem amigas ou familiares, e se eu pudesse ser vista somente uma vez em um grande momento no palco sem que ninguém “conhecido” soubesse minha alma certamente estaria muito realizada.
Cássia, acompanho seu blog a um bom tempo, sempre admirei seus textos porém nunca comentei. Mas esse realmente me inspirou. Fico observando as meninas que vazem ballet comigo, elas passam a aula inteira reclamando de dores e cansaço, creio que sequer gostam de fazer ballet. Me sinto até mesmo, de certa forma, mau ao lado delas. Quando faço um passo diferente, aleatoriamente, elas as vezes me olham de um modo estranho, tipo “Nossa você consegue fazer isso”.Sou muito tímida, e parei de fazer isso a pouco tempo exatamente por medo delas acharem que sou exibicionista. Gostaria de saber sua opinião, você acha que é bobagem eu me preocupar com o que elas pensam? Por obséquio, não deixe de me responder. Parabéns pelo texto. Abraço.
Cássia, que texto lindo! Você sempre nos traz essas boas (e necessárias!) reflexões. Como todos estão contando um pouquinho de si aqui, vou também falar sobre mim. Tenho 16 anos, e desde pequena, sonhava em dançar o ballet clássico. Mas, como eu era uma criança gordinha, minha mãe dizia que eu ia sofrer demais, que meus pés não teriam força para aguentar meu corpo. Eu sei que ela queria meu bem, mas eu sempre imaginava como seria, e morria de inveja das minhas amigas que eram bailarinas. Até que, no ano passado, entrei em uma forte depressão; eu só chorava, e pensava em suicídio o tempo todo. Me consultei com um psiquiatra, fiz terapia com um psicólogo, mas quando a gente não acredita nem em nós mesmos, fica difícil pensar que a situação vai mudar. Eu mesma sabia que eu não iria “durar” muito se continuasse triste como eu estava, e decidi reviver esse sonho antigo, ainda que fosse por pouco tempo. O ballet me salvou, me deu um ânimo novo. Várias vezes eu estava triste, mas ficava feliz só de pensar que eu podia dançar… De repente, eu quis “viver” de novo! Eu pensava “espera um pouco, tristeza, eu ainda quero sentir mais a dança, quero usar as sapatilhas de ponta, quero ficar com esse sentimento bom!” E aqui estou, curada (parei de tomar remédios), matriculada em uma ótima escola de dança, com alguns dedos doloridos por causa das minhas primeiras aulas de ponta (que começaram há pouco menos de um mês), me dedicando à minha felicidade, e com a mochila pronta, para sair daqui a pouco para minha aula. “Em um mundo de desencontros, no ballet eu me encontrei.”
Adorei ler este texto. Quero que saiba que o escreve tem impacto na vida de muita gente aqui. No meu caso, que estou lesionada há 3 semanas, e estou numa cadeira da biblioteca da minha faculdade de dança, o que acabou de dizer foi certeiro ao meu coração. Estou para aqui a ler blogues e a fazer nada no facebook, quando estou numa biblioteca CHEIA de livros sobre dança sobre coisas QUE EU NEM SONHO. Vou começar agora mesmo a trabalhar em evz de continuar a sentir pena de mim mesma – isso nunca me levou a lado nenhum. Obrigada! Abraço.
Cisne.
Cássia, estudando na faculdade a disciplina Educação Física e Esportes para Pessoas com Necessidades Especiais e lendo o seu texto, coloquei-me a pensar se o direito de dançar me fosse retirado como o direito ao movimento foi exluído da vida de muitas pessoas no mundo. Muitos cadeirantes dançarinos ainda conseguem dar show sobre rodas, mas e os tetraplégicos? Sabe, reclamamos demais de pequenos defeitos, do pé que não tem um colo como gostaríamos de ter, do en dehors que só se segura na base do breu…. Esquecemos mesmo de viver a Dança como deveria ser, e nos apegamos ao fato de mostrar aos outros o que somos. E assim, não sentimos verdadeiramente a essência desta nossa escolha: a de utilizar a alma para dar vida aos movimentos. Que as bailarinas de plantão também reflitam sobre isso….
Nossa, Viviane, belíssimo o seu comentário! Isso é algo que eu nunca tinha pensado. Muito obrigada por compartilhar e nos fazer refletir, de verdade.
Grande beijo.
Muito bom o seu texto, Cássia.
Já vi pessoas assim, que se preocupavam mais em se mostrar bailarinas do que em ser. E outras que mesmo amando dançar desanimaram por achar que ser bailarino é ser visto como bailarino pelas pessoas a sua volta.
Pode até ser chato não ser reconhecida como bailarina, eu não pareço – fisicamente – uma bailarina e vejo as pessoas se espantarem quando eu falo sobre dançar, não posso negar que isso me deixa um pouco triste. Mas pior é ter a aparência e não ter o coração. Amei o que a Tina disse, “A dança é primeiro da gente”. Porque quando a gente percebe isso vê que o que a dança significa pra você é muito mais importante do que o que a sua dança pode parecer para os outros.
Beijos e Feliz dia internacional da dança pra todos \o/
Adorei o texto! João Carlos Martins me emociona. E a reflexão que você propôs foi ótima!
Muito obrigada por esse post maravilhoso. Conheci esse ano, no meu primeiro ano da faculdade, duas pessoas que são bailarinos praticamente profissionais. Eu nunca cheguei e conversei com eles sobre ballet porque tenho vergonha de não ser tão boa que nem eles, afinal, começei a 4 anos e nunca terei a técnica ou dançarei tão bem quanto ambos. Mas uma coisa tenho certeza que compartilhamos, o amor pela dança,
Acho que no final é isso que importa, ama-la. Afinal, posso não ser a melhor bailarina da minha sala, mas as vezes sinto que me entrego e me esforço muito mais do que as melhores. As dificuldades me ajudam a ir para frente e sinto que sou uma bailarina bem melhor por causa delas.
Ao ler esse post, senti que tinha que comentar porque voce praticamente transmitiu tudo que tenho sentido nesses últimos dias por ele.
Muito obrigada Cássia :]
Estava precisando de um texto assim… Sei exatamente o que quer dizer. Aquelas que só querem ser vistas, quando não são, se frustam… Acham que não realizaram nada. Desistem ou qualquer coisa do tipo. Dançar por gostar não significa nada, para essas pessoas o que importa é aparecer, ser reconhecida. Há um tempo atrás, pensei sobre isso. Estava frustrada e não sabia o que era. Eu fiquei triste quando percebi que poderia ser uma delas, das que só querem o glamour. Será que eu gostava tanto de ballet assim?
Há alguns anos atrás, tinha acabado de descobrir o ballet e comecei a dançar. Aos 17 anos, muito flexível, postura de bailarina, en dehors 180º, algum talento, talvez. Coloquei na cabeça: Tinha que ser profissional. Pronto, fiz um monte de aulas por dia nos primeiros 2 anos de ballet, fiz sacrifícios, tentei de tudo. Aí torci o tornozelo, claro: Nunca poderia recuperar a técnica dos anos perdidos. Me veio a realidade: Não tinha mais tempo ou psicológico para ser profissional. Nem meu corpo aceitaria toda aquela informação e esforço de uma vez. Às vezes me diziam: “Ah, se tivesse começado mais cedo…”.
Fiquei dois anos sem fazer aula, procurei nem pensar em ballet, de tão frustrada e pequena que eu me sentia. Mas eu percebi que teve um hábito que eu nunca abandonei: Dançar sozinha no meu quarto. E eu continuava, dançava quando queria, quando dava. Sem nem me preocupar com nada, só porque fazia bem. Foi nisso que minha frustração foi sumindo… Aí eu voltei depois de 2 anos parada, quando queria apenas dançar e não doeu nada por isso. Hoje eu vejo o quanto fui boba em pensar que só teria a dança se fosse profissional! Se fosse vista. A dança é primeiro da gente.
“A dança é primeiro da gente.” Tina, sem palavras para essa sua frase. Eu me emocionei o comentário todo, mas essa frase diz tudo. Obrigada! Vou levá-la comigo para sempre.
Grande beijo.
Simplesmente maravilhoso!!
Tina, me deu vontade de te abraçar depois de ler esse comentário. Conheço um rapaz que passou por uma situação parecida com a sua, o triste foi que ele não percebeu o mesmo que você, e jogou as sapatilhas fora. E eu também me encantei com a frase do final: “A dança é primeiro da gente.” Acho que todas as pessoas que dançam deviam entender isso.
Profundo…
sem dúvida alguma eu quero ser vista como bailarina *-* e vamos que vamos,amando e estudando
feliz dia internacional da dança, Cássia!
Querida, releia o texto. Eu critiquei justamente isso, quem só quer ser vista como bailarina. =)