Saindo do casulo

Eu quero falar sobre este assunto há bastante tempo, mas sei que gerará controvérsias e muitas pessoas ofendidas. Não é para ninguém se doer, é para pensarmos juntos.

Para facilitar, eu pegarei como exemplo o filme Black Swan. O post não é sobre o filme, tudo bem? Ele é apenas a base para eu falar sobre o assunto.

Quanto mais o tempo passa, mais eu percebo que muitos bailarinos são fechados em si mesmos. A vida gira em torno do ballet clássico. Claro, até pela grande característica dessa arte: dedicação em tempo integral. E isso não acontece apenas com profissionais, nós amadores somos tomados de tal maneira, que o assunto torna-se onipresente: vamos às aulas de ballet, lemos sobre ballet, assistimos a vídeos de ballet, treinamos ballet em casa, ouvimos ballets de repertório. Ballet, ballet, ballet, ballet.

E o restante do mundo?

Na entrevista do Daniil Simkin, traduzido pela querida Juliana, ele diz: “Eu amo ver outros bailarinos e outras formas de arte. […] Na minha opinião, quando eu vejo alguma coisa, quando leio alguma coisa, absorvo algo, isso te faz melhorar como ser humano […].” Quantos pensam da mesma maneira?

Na época do lançamento de Black Swan, eu fiquei impressionada com os comentários a respeito. Mas muito impressionada. De bailarinas profissionais a estudantes de ballet clássico, uma coletânea de absurdos. Todos rechaçando o filme, dizendo que ele não retratava a dança, que a protagonista nada tinha de bailarina, que muitas mães pensariam duas vezes antes de colocar suas filhas no ballet depois disso, que uma bailarina deveria ter feito o papel.

Alguém notou que era um filme? Uma obra com características próprias. Além disso, a arte não tem qualquer obrigação com a realidade. Especialmente o cinema, a arte da ilusão. Quantas pessoas perceberam que o ballet clássico era o pano de fundo? Quantas notaram que a Nina Sayers não representava as bailarinas, mas que se tratava de uma única artista em completo estado de desequilíbrio? E que a Lily era um contraponto, para mostrar que bailarinas são sim normais, apenas a Nina não era?

Mais ainda, quem descobriu esta grande metáfora de Black Swan:

[…] A bailarina do filme descobre que o papel de filha submissa é incompatível com sua entrega à dança. Através da dança metaforiza-se o surgimento de uma mulher, que rompe com a mãe, supera-a e aprende a usar o corpo para seu prazer e glória. Afinal, como belo cisne negro se realiza no palco, polarizando os olhares, fazendo o papel que os clichês de seu sexo designaram como próprio. A boa filha não é compatível com a bela mulher. O patinho lindo da mamãe precisa ser assassinado, para chegar solitário, sofrido e incrédulo ao seu lugar de cisne.

Diana Corso, trechos de De Patinho Feio a Cisne Negro.

História de uma bailarina? Não, a transformação de uma menina em mulher. E, quando isso acontece, teve gente contando fouettés…

Então eu pergunto: As pessoas não entenderam o filme por falta de inteligência? Não, meus caros, isso nada tem a ver com inteligência, mas com ausência de percepção.

Talvez isso aconteça com aqueles que veem o ballet clássico como a única grande arte universal. Há outras artes, outras coisas, outras pessoas. Há um mundo ao nosso redor.

Qual foi a última vez que você leu um livro de ficção? Isso, literatura pura e simples. Ou assistiu a um filme que não tenha a ver com dança? Ou ouviu músicas sem qualquer relação com o clássico? Ou foi a uma exposição de arte?

Quem aqui já tocou em uma escultura? Ou passou vários minutos diante de um quadro? Ou ouviu música para pensar na vida? Ou assistiu a um filme que não é campeão de bilheteria?

A arte está tão além. O mundo é tão vasto. Nesse instante, há pessoas do outro lado do planeta que estão vendo outras coisas, de um outro jeito, pensando de uma outra maneira. Não é limitador achar que a vida na arte se resume a um arabesque bem-feito?

Quando uma pessoa está diante de um filme como Black Swan e limita-se a ver os detalhes técnicos de dança, é porque não se abriu para aquela obra. É obrigatório gostar do filme? Claro que não. A grande questão é se abrir para ele, sem expectativas. E isso não vale apenas para um filme, mas para tudo.

Um artista é composto pela vida que acontece todo santo dia. Será que não está na hora de se abrir para o mundo?

Isso nos tornará bailarinos melhores? Não. Nós seremos pessoas melhores.

*
Para começar a abrir a mente, ouçam a trilha sonora de Black Swan. Há trechos de O lago dos cisnes com outras músicas. Quando esperamos o compasso seguinte, tudo muda. Quebra a nossa expectativa. E é um excelente exercício para se deixar levar.

Para ouvir, aqui.

11 comentários sobre “Saindo do casulo

  1. Concordo contigo, Cássia. É fundamental que tenhamos esse olhar pro novo e pro diverso pois ele nos melhora como seres humanos, como tu mesma afirmaste no teu texto. Desta forma, nossa performance profissional e diária (qualquer que seja) vai ser inundada por essas novas visões. Isso se chama EXPERIÊNCIA e a gente só adquire VIVENDO. Está tão na moda ser globalizado – porque não ser assim também nos nossos fazeres pessoais.
    Achei tua reflexão muito pertinente. Parabéns! Um abraço!

  2. Um dos motivos de eu ter largado a Dança foi esse, tudo muito fechado eu não tinha pra onde expandir! Eu faço Teatro hoje, me arrependo absurdos de ter largado o balé, mas voltarei um dia com certeza! Mas com uma cabeça mais aberta, com uma visão de artista e não técnica como a maioria dos bailarinos tem. E pra mim, o Black Swan mudou minha vida, essa transformação de menina-mulher está sendo tão difícil quanto a da personagem! Acho incrível, adorei saber que existem pessoas da Dança que pensam como eu…

  3. belas palavras, nem tudo gira em torno da dança e muitas pessoas precisam ver isso 🙂

    beijos e até!!

  4. Olá,como eu disse estou sempre olhando esse blog, e achei perfeito o seu texto, tem tudo a ver com o que eu penso. Eu além de me dedicar ao ballet, sou também formada em Artes Visuais e sou professora de Arte na rede Estadual de Ensino de SP, vejo e escuto cada coisa desse tipo que você falou no texto como falta de percepção e é isso mesmo, infelizmente muita gente mesmo, ainda não consegue se abrir para outras coisas e ter olhar um de descolberta, de ver e olhar as coisas ao seu redor e adquirir uma experiência, uma reflexão, uma mudança; vivencio situações no meu cotidiano que esbarram o tempo todo nessas situações… depois eu comento mais, até +

  5. Sempre pensei em Black Swan como uma boa oprotunidade de ver ballet,dança em um filme,já que isso é um pouco raro. Mas nunca pensei nele como um filme de ballet propriamente dito. Acho até que esse é o grande diferencial de Black Swan,adicionar outros mundos,outros dilemas que não da dança. Boa parte dos filme de dança se prendem a isso,os personagens vivem e respiram dança como se não houvesse mais nada no mundo. Tudo que eles desejam conquistar,seus sonhos frustrações sempre tem a ver com a dança.
    Ora,Black Swan foi um filme onde a personagem principal tinha uma atividade:o ballet. Mas poderia ser futebol,surf.
    O filme não foi sobre ballet. Foi sobre Nina Sayers

  6. vixe Cassia! Dá pra escrever um tratado sobre seu artigo!!! Eu concordo com as críticas que você fez sobre o filme Black Swan, também gostei muito dele, como havia comentado anteriormente, e procurei interpretá-lo como filme… Mas passando esse cenário inicial, me deu um frio na barriga quando vc menciona no artigo que “vamos às aulas de ballet, lemos sobre ballet, assistimos a vídeos de ballet, treinamos ballet em casa, ouvimos ballets de repertório. Ballet, ballet, ballet, ballet.”, porque é assim que me sinto muitas vezes e, sinceramente, não sei dizer se isso é bom ou ruim. Contudo, nos últimos dias, algumas coisas estão mudando em minha cabeça (e, em alguns momentos, me sinto culpada por isso, acredita?). Por exemplo, meu marido parou de fumar e começou a andar de bicicleta. Para incentivá-lo, comecei também e, no final, estou tomando gosto pela coisa e querendo mais tempo para andar de bibicleta com ele. Só que, para fazer isso, eu teria que diminuir meu tempo na academia de sábado. Você não sabe o nó que deu na minha cabeça, ao pensar em reduzir uma hora de permanência no sábado na academia. E no final cheguei a conclusão que sim, devo fazer isso, devo priorizar outras coisas além do ballet. E, as vezes, sinto orgulho de uma decisão como essa para, depois, me sentir culpada. Papo de doida, né? Desculpe, nem sei se sai um pouco do tema que vc quis propor, mas entendi (na minha interpretação), que você alerta para a necessidade de vivermos mais outras coisas. Eu amo o ballet, mas tenho que admitir que ele mexe muito com nossa cabeça,,, Bjus

  7. Aprender a desenvolver perspectiva e distanciamento para avaliarmos nossas próprias atividades é um desafio empolgante e recompensador.

  8. Sabe, percebe esse isolamento não apenas no ballet. É muito fácil ver isso com advogados e profissionais do direito, digo porque sou da área. Tive uma professora que comentou que tinha apenas uma amiga que não era da área era fisioterapeuta, tive pena dela porque ela se restringiu a uma parcela muito pequena do mundo. Acho que isso pode acontecer com qualquer sujeito em qualquer situação, esse fechar-se em si mesmo.
    Espero que isso nunca aconteça comigo, eu amo o ballet, mas amo outros estilos. Adoro parar na rua e ver um grupo de argentinos tocando tango, ou a banda do exército tocando “amigos para sempre”, música que eu considero campeã em termos de breguice heheh.
    Enfim, acho que saí um pouco fora do contexto, mas concordo com o que disse.

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